quarta-feira, 27 de agosto de 2008

A Amarelinha pifou!


Tínhamos deixado Marrakech há umas duas horas, quando o leve “tac, tac” proveniente do motor, que nos acompanhava desde há algum tempo, foi ganhando volume até se tornar num ruidoso e insuportável martelar acompanhado pela súbita perca de andamento. Com um estertor final imobilizámo-nos na berma bem no meio das montanhas. Os primeiros olhares que trocámos foram de incredulidade e desalento mas também me recordo que conforme descemos e nos dirigimos para a traseira da carripana, começaram a brotar “bocas” e diversos impropérios jocosos que rapidamente nos puseram de bom humor.
Ali estávamos nós, com uma Combi de motor pifado, no meio de quase nada, e a quilómetros de qualquer oficina. Para começar, resolvemos tirar uma foto para a posteridade e marcar dessa forma o assinalável momento do que poderia ser o descalabro da nossa aventura. Contrariamente ao esperado, no entanto, o nosso estado de espírito tinha-se tornado em extrema boa disposição o que ficou eloquentemente gravado na película. Penso que o cenário das fantásticas e imponentes montanhas que nos rodeavam, associado ao silencio que tudo parecia envolver, terá+a contribuído decisivamente para que ficássemos relativamente tranquilos quanto ao futuro.
Impunha-se uma decisão quanto ao rumo a seguir. A hipótese de carregar a amarelinha num dos camiões carregados de marroquinos que começavam a passar, embora eventualmente realizável, não nos pareceu muito sedutora. O Pedro sugeriu então que dois de nós se deslocassem à boleia até Agadir, e procurassem o seu pai que aí se encontrava, de forma a podermos ser rebocados até onde fosse possível uma avaliação mais realista da situação enquanto os outros permaneceriam de guarda aos parcos bens.
Dito e feito. O Manel e a Madalena puseram-se à beira da estrada, e como um dos dois era mulher, não tardaram em arrancar rumo a Agadir.
Quanto a nós, o Pedro e eu, e depois de uma troca de olhares entendidos, resolvemos tirar partido da forçada paragem para curtir umas brocas e aproveitar o “dolce farniente”.
A sensação de não ter nada para fazer e aproveitar-se disso mesmo para flutuar entre a presença e a dissolução no ambiente, ficou-me gravada no subconsciente e ainda hoje me serve de ancora quando me sinto mais ansioso ou preocupado mostrando-me a futilidade de esbracejar quando por vezes basta esticar as pernas para voltar a ter pé.
Comemos o que havia, uns ovos mexidos com tomate e arrastámo-nos durante todo o dia, tendo tido uma visita ocasional de alguns miúdos saídos não se sabe de onde, e visto desaparecer por entre nuvens de poeira, uma ou outra camioneta Renault carregada de sacos, cabras e habitantes locais que após uma saída intempestiva da estrada se embrenhavam por entre a vegetação rumando para o horizonte montanhoso.
Deviam ser umas onze da noite quando os faróis da VW do Pedro pai nos iluminaram tirando-nos do torpor sonolento em que nos encontrávamos. Ligeiramente sarcástico, falou pouco acerca do sucedido e rapidamente atrelámos a nossa Combi à sua traseira. Como o percurso até Agadir, conhecido pela estrada da morte, era pontuado de subidas e descidas com inclinações razoavelmente acima das normas recomendadas pela segurança rodoviária, e sendo a sua VW uma 1200 bastante viajada, combinámos que duas buzinadelas nas descidas significaria levantar o pé do travão para podermos ganhar a velocidade suficiente para nos permitir alcançar a subida seguinte. Apenas me recordo ter travado duas ou três vezes, e só por ver a sua traseira perigosamente próxima da nossa frente, muito embora o Pedro pai buzinasse freneticamente em cada descida que fazíamos. As subidas por seu lado, depois do embalo alucinante da descida, passavam de uma velocidade dificilmente governável no seu inicio, para um arrastar ofegante junto ao cume, depois de o nosso reboque ter reduzido todas as mudanças disponíveis acabando depois de o arranhar da 1ª, não sincronizada. Isto por entre uma escuridão total mal descortinada pelos débeis faróis das nossas duas viaturas.
Finalmente chegámos a Agadir, e o Pedro pai deixou-nos num parque de estacionamento perto da praia, despedindo-se para regressar à namorada nova e às suas férias no Club Med. Devo acrescentar que a namorada nova, da época, é desde então e ainda hoje a sua maravilhosa companheira Mané. Profético encontro esse.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Marrakech Express

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Uma das características relevantes da Combi amarela, era sem dúvida o som. Tinha conseguido (à época não era nada fácil) um conversor de 12 para 220V, e como tal, tinha podido instalar a minha aparelhagem de casa Onkyo de 200 watts, comprada com as poupanças do trabalho “eventual” no INE, incluindo as colunas de 3 vias de 60X30X30, na traseira oportunamente transformada em “lounge” com espojadoro. Escusado será dizer que o volume e qualidade de som, eram, à época, absolutamente únicos num tal tipo de veículo. A escolha das cassetes gravadas para o efeito tinha sido eclética e judiciosa, e em qualquer paragem nos campings de ocasião, atraímos a atenção e solicitude dos poucos mas duros hippies que connosco se cruzavam. Fruto de um desses encontros, tinha sido a hábil compra, após aturada negociação, de uma barra de “chocolate” de primeira categoria que muito contribuía para o ambiente de descontracção e despreocupação que se vivia a bordo.
Ora uma dessas cassetes, que ouvíamos amiúde, era o extraordinário Marrakech Express dos harmónicos Crosby, Still & Nash. Nada mais natural então do que entrarmos pelas montanhas dentro a caminho de Marrakech.
A viagem até à cidade vermelha decorreu como até ai sem grandes incidentes, exceptuando as estranhas visões de cabras em artístico equilíbrio nos ramos mais altos dos "argans", e os ocasionais grunhidos da amarelinha que tinham recomeçado pouco tempo depois da nossa saída de Casablanca. Nada de preocupante sobretudo depois de um ou dois “cacetes” que o Pedro habilmente ia confeccionando.
Chegámos à dita em pleno Ramadão, e claro que por lá deambulámos, não nos esquecendo de nos perdermos no souk, acabando com as cobras, lagartos e aguadeiros na tão famosa Djema el Fná. Impressionante mesmo, nesse mês de Ramadão, era observar os marroquinos sentados á mesa, prato de harira à sua frente, a aguardar o pranto do almuadem do cimo dos minaretes, a anunciar o fim do jejum. Então, sim. Despencavam-se as colheres na mistura quente, e o semi silêncio abafado da tarde ruía por entre o restolhar de talheres e os "slerps" da comida quente sorvida com apetite.
Ao fim da tarde, lá encontrámos poiso para a nossa carroça, num minúsculo camping onde a principal atracção, como já vinha sendo hábito, foi a nossa música e as inevitáveis “provas” dos diversos “shits” disponíveis e solicitamente oferecidos em troca daquele som tão raro nessas paragens. Tenho de lembrar aos mais novos, que naquela época o que de mais portátil havia eram os auto rádios, e a maior parte dos viajantes da nossa colheita mal tinha dinheiro para se deslocar quanto mais equipar o transporte com tão sofisticados equipamentos, isto para não falar dos que viajavam apenas com uma pequena mochila e um pano que se esticava entre duas árvores para abrigar do eventual cacimbo nocturno.

Those were the days…

Léxico:
Onkyo; marca japonesa de alta-fidelidade (!) já desaparecida.
Chocolate; dispenso-me de explicações que poderiam ainda mais comprometer a minha já fraca credibilidade. Invoco as mesmas razões para não “lexicar” o termo “shit” ou “cacete”.
INE; instituto nacional de estatística, onde os adolescentes lisboetas com algumas letras, encontravam emprego temporário na contabilização dos diversos inquéritos.
Lounge; hoje em dia toda a gente sabe o que é.
Espojadoro; local adequado à prática do “espojanço”, vulgo “assapar” ou ainda “acachapar-se” meio sentado, meio reclinado e quase totalmente deitado num sofá ou outra superfície adequada. Não explico mais senão não saímos disto.
Crosby, Still & Nash; e às vezes com o famigerado Young à mistura. Quem não conhece; blasfémia, nada como “u-tubalos” para ouvir como eram.
Argan; árvore parecida com as nossa oliveiras e de cujos fruto se extrai um óleo fabuloso; óleo de argan.
Souk; bairro antigo e tradicional nas cidades árabes dedicado ao comércio.
Djema el Fná; a praça central de Marrakech, adjacente ao souk, e lamentavelmente insuportável nos nossos dias pelo assédio ao turista que ai se pratica.
Harira; sopa marroquina com diversos tipos de confecção, é normalmente espessa constituindo por si só uma refeição, e muito utilizada para ruptura do jejum durante o Ramadão (mês de significado religioso em que se observa o jejum durante o dia).
Almuaden; também conhecido por muezzin, é o religioso encarregue de gritar no cimo dos minaretes a chamada para a oração.
Slerps; interpretação pessoal do som emitido pelo sorver ávido de sopa quente.
Shit; ver “chocolate”.

quinta-feira, 10 de julho de 2008

VOYAGE, VOYAGE...

As primeiras surfadas.

"The wild bunch"

Para ser sincero, não tenho qualquer recordação da viagem até Marrocos. Sei que acabámos por ser quatro. O Pedro (filho) e a sua namorada, uma miúda sensacional que aos 16 anos já tinha percorrido a Europa em comboio, o Manel aluno de medicina, meu companheiro do Va Va e à época MRPP convicto, e Je, claro. A ideia era chegar rapidamente a Marrocos e foi o que fizemos sem maiores contratempos.
Passadas as burocracias da chegada, que 30 anos depois se mantém mais ou menos inalteradas, dirigimo-nos rapidamente para a costa à procura de mar e ondas. Sei que pelo caminho até Casablanca, a Combi foi dando algumas manifestações de má disposição, que na altura julguei serem da caixa de velocidades, mas que mais tarde se revelaram trágicas. Aqui cabe contar um episódio bastante revelador da mentalidade marroquina. Em Casablanca, e perto da residência do Rei, procurávamos uma oficina onde averiguar a razão dos persistentes grunhidos da amarelinha. Achámos por bem solicitar, muito educadamente, a colaboração de um agente da autoridade que se encontrava a tentar controlar o caótico trânsito das "mobilettes" e "petits táxis". Solícito, começou a dar-nos indicações extremamente precisas sobre o caminho a seguir, devidamente ilustradas por inúmeras referencias geográfico-paisagísticas. Chegado ao fim, e tomando consciência da sua competência, olhou-nos nos olhos e disse: “Ça, c’est une três bonne explication” (isto é uma óptima explicação). Tendo dito, virou-nos as costas e afastou-se repetindo sem parar a sua brilhante constatação.
Claro que demos com a oficina, mas o diagnóstico não nos pareceu convincente e como a máquina se estava a portar bem desde o nosso encontro com a autoridade, dirigimo-nos para a primeira praia que o Pedro (pai) nos tinha indicado.
Não me recordo o nome e não a consegui localizar posteriormente, mas sei que ficava perto de uma base militar dos USA. As ondinhas estavam do melhor para mim, razoável nabo, e o Pedro embora achando que estava pequeno, lá foi sacando umas surfadas enquanto me dedicava ao meu desporto favorito: dar banho à prancha.
Tivemos mais tarde um episódio menos brilhante, quando o Manel que se julgava fotógrafo, começou, sem pedir licença, a fotografar uns noivos que passavam no molhe. Como o nosso rapaz, cabeludo como era da prache, moreno e de bigodes, não reagiu muito bem às investidas dos mouros que lhe queriam sacar a máquina (Nikon XPTO), tivemos de usar de alguma diplomacia para bater em retirada sem maiores contratempos.

Léxico.
MRPP , movimento reorganizativo do partido do proletariado, também conhecido por alguns como “meninos rabinos que pintam paredes” (muito activos no pós 25 de Abril nas decorações murais realizaram alguns frescos verdadeiramente espantosos).
Va Va, nome de um jogador de futebol (brasileiro) e café carismático do bairro de Alvalade muito frequentado pela “inteligentzia” artística lisboeta.
Mobilettes, motorizadas tipo aceleras francesas, que os marroquinos construíam e modo de locomoção privilegiado dos locais remediados.
Petits Taxis, como o nome indica, os táxis de lotação mais reduzida (embora 7 pessoas não fossem demasiadas), geralmente de marca francesa, tipo Peugeot 404, ou Simca Aronde. Vi recentemente um desses onde para além dos inúmeros passageiros amontoados pelos bancos, se encontrava um virado de costas para a frente sentado ao colo do condutor.

quarta-feira, 9 de julho de 2008

1977, Marrocos, um pão de forma e 4 amigos...



São Pedro do Estoril foi provavelmente a primeira praia de Portugal onde a palavra surf ganhou significado. Antes ainda dos primeiros alucinados começarem a comprar freneticamente aos “freaks” de passagem, pranchas de surf mais ou menos adequadas, já aí se praticavam diversas modalidades de andar nas ondas. Dos colchões Repimpa às canoas de tábuas de pinho, tudo servia para cavalgar as bichas até mesmo nos dias de marés vivas, como então lhes chamávamos.

O que tem isto a ver com viagens e sobretudo Marrocos? É simples. Acontece que o verdadeiro pai do surf lusitano, um senhor chamado Pedro Lima, tinha um filho também ele chamado Pedro Lima. E um dos entusiastas do dar banho á prancha, na tal praia de São Pedro, o vosso escriba de ocasião, tinha acabado de completar a transformação da sua já velha VW Combi acabada de comprar, num magnífico motorhome, nome então desconhecido, mas que significa como então significava, casa sobre rodas. Pois. E então? Então acontece que o dito Pedro Lima, pai, tinha resolvido mostrar Marrocos á sua nova namorada, na sua também já bem rodada VW Combi, e o Pedro Lima, filho, tinha sugerido ao orgulhoso dono da outra Combi (na altura era coisa de gente muito á frente), aproveitarem para fazer uma surf trip pois se em Portugal o surf ainda era novidade, em Marrocos nem se fala.
A perspectiva de praias fabulosas e desertas, clima fantástico, sobrevivência muito em conta e conhecer África já aqui ao lado, era a oportunidade de concretizar sonhos de aventura e loucura á boa maneira dos heróis dos USA das nossas leituras. Para mais, estávamos em Setembro, mês das ondas grandes e nenhum de nós tinha obrigações escolares…

Passaram-se 30 anos sobre esta viagem, e vai fazer um ano que fui de novo a Marrocos num mini motorhome. Hoje, veio-me a vontade de tentar relembrar o que foi e como foi.
Veremos no que dá.
Hoje fica a introdução, manhã há mais.