segunda-feira, 14 de julho de 2008

Marrakech Express

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Uma das características relevantes da Combi amarela, era sem dúvida o som. Tinha conseguido (à época não era nada fácil) um conversor de 12 para 220V, e como tal, tinha podido instalar a minha aparelhagem de casa Onkyo de 200 watts, comprada com as poupanças do trabalho “eventual” no INE, incluindo as colunas de 3 vias de 60X30X30, na traseira oportunamente transformada em “lounge” com espojadoro. Escusado será dizer que o volume e qualidade de som, eram, à época, absolutamente únicos num tal tipo de veículo. A escolha das cassetes gravadas para o efeito tinha sido eclética e judiciosa, e em qualquer paragem nos campings de ocasião, atraímos a atenção e solicitude dos poucos mas duros hippies que connosco se cruzavam. Fruto de um desses encontros, tinha sido a hábil compra, após aturada negociação, de uma barra de “chocolate” de primeira categoria que muito contribuía para o ambiente de descontracção e despreocupação que se vivia a bordo.
Ora uma dessas cassetes, que ouvíamos amiúde, era o extraordinário Marrakech Express dos harmónicos Crosby, Still & Nash. Nada mais natural então do que entrarmos pelas montanhas dentro a caminho de Marrakech.
A viagem até à cidade vermelha decorreu como até ai sem grandes incidentes, exceptuando as estranhas visões de cabras em artístico equilíbrio nos ramos mais altos dos "argans", e os ocasionais grunhidos da amarelinha que tinham recomeçado pouco tempo depois da nossa saída de Casablanca. Nada de preocupante sobretudo depois de um ou dois “cacetes” que o Pedro habilmente ia confeccionando.
Chegámos à dita em pleno Ramadão, e claro que por lá deambulámos, não nos esquecendo de nos perdermos no souk, acabando com as cobras, lagartos e aguadeiros na tão famosa Djema el Fná. Impressionante mesmo, nesse mês de Ramadão, era observar os marroquinos sentados á mesa, prato de harira à sua frente, a aguardar o pranto do almuadem do cimo dos minaretes, a anunciar o fim do jejum. Então, sim. Despencavam-se as colheres na mistura quente, e o semi silêncio abafado da tarde ruía por entre o restolhar de talheres e os "slerps" da comida quente sorvida com apetite.
Ao fim da tarde, lá encontrámos poiso para a nossa carroça, num minúsculo camping onde a principal atracção, como já vinha sendo hábito, foi a nossa música e as inevitáveis “provas” dos diversos “shits” disponíveis e solicitamente oferecidos em troca daquele som tão raro nessas paragens. Tenho de lembrar aos mais novos, que naquela época o que de mais portátil havia eram os auto rádios, e a maior parte dos viajantes da nossa colheita mal tinha dinheiro para se deslocar quanto mais equipar o transporte com tão sofisticados equipamentos, isto para não falar dos que viajavam apenas com uma pequena mochila e um pano que se esticava entre duas árvores para abrigar do eventual cacimbo nocturno.

Those were the days…

Léxico:
Onkyo; marca japonesa de alta-fidelidade (!) já desaparecida.
Chocolate; dispenso-me de explicações que poderiam ainda mais comprometer a minha já fraca credibilidade. Invoco as mesmas razões para não “lexicar” o termo “shit” ou “cacete”.
INE; instituto nacional de estatística, onde os adolescentes lisboetas com algumas letras, encontravam emprego temporário na contabilização dos diversos inquéritos.
Lounge; hoje em dia toda a gente sabe o que é.
Espojadoro; local adequado à prática do “espojanço”, vulgo “assapar” ou ainda “acachapar-se” meio sentado, meio reclinado e quase totalmente deitado num sofá ou outra superfície adequada. Não explico mais senão não saímos disto.
Crosby, Still & Nash; e às vezes com o famigerado Young à mistura. Quem não conhece; blasfémia, nada como “u-tubalos” para ouvir como eram.
Argan; árvore parecida com as nossa oliveiras e de cujos fruto se extrai um óleo fabuloso; óleo de argan.
Souk; bairro antigo e tradicional nas cidades árabes dedicado ao comércio.
Djema el Fná; a praça central de Marrakech, adjacente ao souk, e lamentavelmente insuportável nos nossos dias pelo assédio ao turista que ai se pratica.
Harira; sopa marroquina com diversos tipos de confecção, é normalmente espessa constituindo por si só uma refeição, e muito utilizada para ruptura do jejum durante o Ramadão (mês de significado religioso em que se observa o jejum durante o dia).
Almuaden; também conhecido por muezzin, é o religioso encarregue de gritar no cimo dos minaretes a chamada para a oração.
Slerps; interpretação pessoal do som emitido pelo sorver ávido de sopa quente.
Shit; ver “chocolate”.

2 comentários:

Marina disse...

Adoro, como sabes, ouvir as tuas estórias..
escritas, são simplesmente deliciosas!!!! ;-)))

c disse...

E eu que, apesar de descendente de gentes da região das Alcarias e dos albericoques, nunca fui a Marrocos... aproveito a boleia.
P.S.: Curiosíssima por saber o que de trágico aconteceu afinal à amarelinha.